Apresentação de Isabel Soares no lançamento de «Os Últimos do Estado Novo», de José Pedro Castanheira - Tinta da China

Apresentação de Isabel Soares no lançamento de «Os Últimos do Estado Novo», de José Pedro Castanheira

«Quando, no final do mês de agosto, o José Pedro Castanheira me telefonou a dizer que me queria propor o desafio de apresentar o seu novo livro, disse-lhe obviamente que sim, por razões de amizade de muitos anos, mas, sobretudo porque respeito muito o seu trabalho como jornalista e investigador. Disse-me também que o livro era editado na Tinta da China, da Bárbara Bulhosa, editora que muito prezo e admiro, e essa foi também uma razão forte para aceitar.

Quanto ao livro propriamente dito, disse-me tratar-se de uma compilação, aumentada e revista, de uma série de artigos, de investigação histórica, por ele publicados no Expresso, ao longo dos anos, sobre o 25 de abril e a crise final do Estado Novo, o que achei excelente, dada a proximidade dos 50 anos da Revolução.

Terceira razão que me fez aceitar este convite, o livro seria também apresentado pelo Dr. Miguel Caetano, filho do Prof. Marcello Caetano, ideia que me entusiasmou pelos dois ambientes antagónicos de que éramos oriundos. Não o conhecia até hoje mas respeito-o, até porque temos amigos comuns, que sempre elogiaram a sua forma de estar, a sua inteligência e competência profissional.

Quando comecei a ler o livro verifiquei que já conhecia a maioria dos textos, porque sou leitora fiel do Expresso, mas o que achei importante foi tê-Ios todos juntos e pela ordem cronológica que o José Pedro Ihes deu, que nos dá uma clara visão de dois países diferentes: os que acreditavam e estavam com o Estado Novo e os outros, que estavam do outro lado da barricada, numa firme oposição à ditadura.

Partilho da sua opinião que a “vida não se resume ao preto e branco”, e que existem muito mais cores e matizes e também, que passados 50 anos, fazemos todos uma leitura muito mais serena e descomprometida, menos apaixonada, ideologicamente menos militante, e logo mais tolerante, distante, fria e racional.

Faço, obviamente, parte daqueles para quem o 25 de abril foi o acontecimento mais marcante do século XX português e porque não dizê-lo, um dos dias mais felizes da minha vida.

Foi, como para Sophia de Mello Breyner,
(…) “a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.”

Mas a leitura deste livro – que considero um testemunho muito importante para todos – é fundamental para os mais novos, para quem a liberdade é tão natural como o ar que respiram, e a quem se fala tão pouco do antes e do depois do 25 de abril.

Portugal era em 1974 uma ditadura. Era um país triste e cinzento, onde não havia liberdade, onde existia urna repressão dura, com inúmeros presos políticos, havia censura e uma guerra colonial sem fim à vista, onde os jovens morriam ou regressavam estropiados ou profundamente perturbados. Como cantava Adriano Correia de Oliveira “o soldadinho não volta do outro lado do mar”.

O primeiro capítulo do livro é sobre o último diretor do Campo do Tarrafal, Eduardo Vieira Fontes, antigo funcionário do Ministério do Ultramar, que José Pedro foi entrevistar aos Estados Unidos onde estava radicado.

O Campo do Tarrafal, verdadeiro campo de concentração, tinha sido criado por Salazar em 1936, e devido às suas terríveis condições climatéricas e de extrema violência prisional, era apelidado de campo da morte lenta. Foi neste campo que morreram 51 reclusos comunistas e anarquistas, como Mário Castelhano ou Bento Gonçalves, e para lá foi deportado, com apenas 15 anos, Edmundo Pedro, que ali permaneceria em condições deploráveis cerca de 10 anos. A seguir à Segunda Guerra Mundial, em 1954, encerraram o campo por pressões internacionais para ser reaberto em 1961, com o início da Guerra Colonial, por ordem – ironia das ironias – do então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, como campo de trabalho para prisioneiros pertencentes aos movimentos de libertação das colonias.

Em 1974, o 25 de abril só chegaria ao Tarrafal a 1 de maio, altura em que foram libertados os 51 reclusos que lá se encontravam. Eduardo Fontes tinha sido nomeado diretor do campo em setembro de 1967 e lá permaneceu até ao fim. A sua conversa com José Pedro é de urna candura quase patética.

Limitou-se a cumprir ordens, uma vez que era funcionário público, sem nunca demonstrar qualquer culpabilidade e revelando sempre alguma falta de memória. “Não fui nenhum carrasco, e os regulamentos tinham que ser cumpridos”, assim se definiu. Interessante nesse capítulo as perguntas que alguns ex-reclusos Ihe dirigem por intermédio do jornalista.

Recordo muitos dos nazis que depois da derrota diziam que se limitavam a cumprir ordens! Longe de mim querer comparar o nazismo com a ditadura portuguesa, e que isso fique bem claro.

O segundo capítulo trata dos últimos presos políticos do Estado Novo. Com efeito a 18 de abril de 1974, urna semana antes do 25 de abril, a PIDE/DGS monta uma gigantesca operação em Lisboa e no Porto, de que resulta a detenção de 30 oposicionistas. Os 15 presos em Lisboa são todos ligados ao PC, enquanto que os 15 do Porto eram ativistas da extrema esquerda. Seriam todos libertados às primeiras horas do dia 27 de abril, quando finalmente se abriram os portões de Caxias restituindo à liberdade os 78 presos políticos que lá se encontravam.

Estas detenções, uma semana antes da revolução, revelam ou uma decisão de demonstrar força e assustar a oposição antes do 1o de maio, data que os preocupava sempre muito, ou, antes pelo contrário, dão bem a imagem de quanto a policía política estava a leste do que se estava a passar no país. A verdade é que junto da oposição corriam nessa altura, sobretudo depois da edição do livro do general Spínola, Portugal e o Futuro, rumores insistentes de que se estava a preparar algo. Lembro-me bem do Raúl Regó nos avisar dessas movimentações militares para que passássemos essa informação ao nosso Pai, no exílio em Paris.

O terceiro capítulo é sobre o último governo da ditadura, chefiado pelo Professor Marcello Caetano, e remodelado cinco semanas antes da revolução. Composto por 36 membros, 15 ministros, 12 secretários de estado e 8 subsecretários, todos eles homens. Este governo tinha sido nomeado por Américo Thomaz em 27 de setembro de 1968, no seguimento da queda da cadeira do ditador Salazar e durou até à sua exoneração em 25 de abril de 74.

Apenas 4 governantes foram detidos na sequência da revolução: 3 ministros, Silva Cunha, Moreira Baptista e Andrade e Silva, respetivamente da Defesa, Interior e Exército, e um subsecretário de estado, Viana de Lemos, do Exército. Destes, apenas um foi condenado em tribunal – o do Interior – porque tinha a tutela da PIDE/DGS.

Alguns saíram do país após o 25 de abril e viveram no Brasil ou na vizinha Espanha por algum tempo, mas a maioria acabou por regressar tranquilamente a Portugal, no final dos anos 70, início de 80. Outros ainda viriam a ocupar novamente cargos governamentais, como foi o caso de Veiga Simão, outros ainda, seriam deputados de um país livre.

É muito interessante esta leitura porque dá bem a imagem do país de brandos costumes em que vivemos.

De todos eles apenas um se recusou a voltar a Portugal, o Professor Marcello Caetano. O ex-presidente do Conselho, tal como o deposto Presidente da República Américo Thomaz, não foi preso, nem julgado, foi antes compelido ao exílio no Brasil por decisão da Junta de Salvação Nacional. Américo Thomaz, regressaria aliás a Portugal em 1980, com o consentimento do general Ramalho Eanes, então presidente da República. Marcello Caetano morreria no exílio, no Rio de Janeiro, com 74 anos, ao que parece amargurado e ressentido. Depois da queda de Salazar, e das notícias da sua operação ao hematoma cerebral e o AVC que se Ihe seguiu, que o deixaram mentalmente incapaz, Américo Thomaz foi compelido a substituí-lo pelo Prof. Marcello Caetano.

Confesso que houve então um vento de esperança que perpassou em alguns setores da oposição. Marcello era visto como o mais aberto e liberal do regime. O meu Pai estava nessa altura deportado em S.Tomé, há quase seis meses, e eu preparava-me para iniciar aí o meu último ano do Liceu. Recordo bem a alegria que então sentimos.

No seu primeiro Conselho de Ministros, a 1 de outubro de 68, Marcello Caetano tomou a decisão de pôr fim à deportação do meu Pai em S.Tomé, não fazendo comentários sobre a legalidade ou não da medida, mas impondo-lhe uma data de fim, 13 de dezembro de 1968.

Antes da queda de Salazar, no início de agosto de 68, o meu Pai escreveu a Marcello Caetano, que tinha sido seu professor de direito administrativo, a pedir-lhe um parecer jurídico sobre a legalidade e inconstitucionalidade da decisão da sua deportação. Marcello Caetano, respondeu-lhe, de imediato, dizendo-lhe que nada poderia fazer, pois achava que o decreto ao abrigo do qual tinha sido deportado não era inconstitucional e que o Governo não agira com manifesto desvio de poder.

Esta carta, que se encontra nos arquivos da Fundação Mário Soares-Maria Barroso, era muito correta e cortês e dizia “não posso pronunciar-me sobre a justiça ou injustiça da medida que o atingiu e quero mesmo acreditar que fosse injusta (…) lsso não significa que não deseje vê-lo o mais breve possível restituido à plena liberdade dos seus movimentos e da sua vida profissional onde pude sempre verificar que se conduz com tanta correção.”

Criaram-se, pois, algumas expectativas numa abertura do regime que seriam rápidamente goradas. As eleições de 1969 foram bem o exemplo disso com a manutenção da censura, a apreensão sistemática de documentação eleitoral da oposição, as provocações constantes da PIDE nas sessões de esclarecimento e o impedimento dos candidatos da oposição em utilizar a rádio e a televisão. As condições eram pois completamente desiguais. Marcello Caetano obteve por isso uma vitória retumbante apesar da imensa abstenção. As eleições tinham sido uma farsa.

E o regime voltou a endurecer.

Apesar do Primeiro Ministro ter iniciado as suas Conversas em Família na televisão, numa tentativa de proximidade com o país, mas a verdade é que nada mudou, a não ser os nomes. Assim a PIDE passou a chamar-se DGS, a União Nacional, partido único, passou a ANP, a censura foi designada com o nome pomposo de Exame Prévio, mas a verdade é que a repressão se manteve, os oposicionistas continuaram a ser presos ou a serem forjados ou intimados ao exílio, como aconteceu ao meu Pai, e a todos aqueles que se recusavam a combater na Guerra Colonial.

Os capítulos 4, 5 e 6o deste livro que tratam do último porta-voz de Caetano, Pedro Feytor Pinto, do último secretário particular, Alexandre Carvalho Neto, e do último presidente do partido único, Elmano Alves, são extraordinários. É como que o branqueamento de uma ditadura, é o legitimar um governo ditatorial e sobretudo é o relato de um país irreal que só existia nas suas próprias cabeças. Feytor Pinto, entre outras revelações sui generis, afirma que Marcelo Caetano achava Álvaro Cunhal “um verdadeiro estadista”, e vai ao ponto de afirmar que ele próprio, Feytor Pinto, “estava na calha, dentro de 6 meses, para ministro dos negócios estrangeiros para fazer a descolonização”! Pasme-se!

Carvalho Neto, que se auto-intitulava como o “criado de luxo de Caetano” e que nessas condições foi, no dia 26 e 27 de abril de 74, à residência particular de Marcello Caetano e a S.Bento destruir urna série de documentos, revela, também, que Marcello Caetano ponderou suicidar-se no Quartel do Carmo.

E finalmente Elmano Alves, último presidente da ANP, o partido único existente, que fez a escola toda na Mocidade Portuguesa, e que relata ter aconselhado Caetano a “defender o poder, desde que seja legítimo, até à última, e resistir até ao fim”, citando o exemplo de Salvador Allende, no Chile. A pequeníssima diferença é que Allende tinha sido eleito democraticamente em eleições livres e resistiu de armas na mão ao golpe de extrema direita de Pinochet, um amigo do Portugal do Estado Novo.

E Elmano Alves critica Caetano, ao dizer que este se rendeu sem resistência, e que e cito “não mandou a GNR dar tiros. Se o fizesse, estou certo que aquela malta fugia como um bando de pardais”. Vivíamos decididamente em países diferentes. Recordo bem esse dia e o entusiasmo corn que a população saiu à rua para apoiar os militares. O regime tinha caído de podre.

De uma candura patética é também a entrevista com o último diretor da censura, que revela e cito que o “Exame Prévio era apenas urna tarefa, com a respetiva remuneração, que desempenhava em regime de part-time”, para acrescentar que tinha todas as semanas uma dor de cabeça chamada Expresso.

E o país viveu até julho de 1970, data da morte de Salazar, numa verdadeira ficção, melhor do que o admirável filme de Wolfgang Becker, Goodbye Lenine. Só que este era um deliciosa ficção e nós estávamos a viver uma trágico-cómica realidade.

Salazar julgou até ao fim que ainda era primeiro ministro, continuando a governar o país, como nos últimos 36 anos, e ocupando o Palácio de S.Bento. Não o deixavam ver televisão, nem ouvir a rádio ou ler os jornais e esta ilusão era alimentada por todos: desde a sua governanta, aos ministros e até ao Presidente da República, que o visitavam regularmente.

A entrevista, que dá ao jornalista francês Roland Faure, do jornal conservador L’Aurore, é absolutamente surreal e nunca saiu uma linha sobre ela em Portugal. Além disso, no dia da entrevista o jornal não chegou ao nosso país. Segundo Roland Faure, Salazar parecia lúcido e estava a par da situação política francesa mas ignorava totalmente a sua situação e o que se passava em Portugal. Durante a conversa teceu elogios a Marcello Caetano, lamentando o facto de ele não aceitar trabalhar com ele no governo e estar apenas dedicado à Faculdade de Direito e finalizou dizendo e cito, “preciso de força para continuar a assumir as minhas funções”.

E a verdade é que todo o regime pactuou com esta farsa.

Em 1972, no seu exílio em Paris, o meu Pai publicou o seu livro Portugal Amordaçado, testemunho importante da história portuguesa até essa altura.

Pediu, então, ao seu amigo e companheiro de luta Abranches Ferrão, colega de curso de Marcello Caetano, que Ihe fosse entregar um exemplar da parte dele. A dedicatória era a seguinte: “Para o Professor Marcello Caetano – este livro que embora admita Ihe possa desagradar, desejo conheça por meu intermédio. Com a esperança de que chegará o dia, nesta terra que nos é comum, em que os adversários não tenham de se comportar, necessariamente, como inimigos.” Mário Soares, Madrid, 29 de abril de 1972 Abranches Ferrão escreveu depois a meu Pai dizendo-lhe que tinha entregue o livro, e que Marcello Ihe tinha dito que já o tinha.

Estas cartas, tal como muitas outras, vão agora ser publicadas numa reedição do Portugal Amordaçado no âmbito da publicação das obras completas levadas a cabo pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Não vou obviamente alongar-me sobre o capítulo do último deportado do Estado Novo, o meu Pai, porque é urna história que vivi e que senti na pele. Não consigo ter o distanciamento suficiente para o comentar. No entanto recordo que, com o meu irmão João me habituei desde a mais tenra infância, a irmos, pela mão da nossa Mãe, visitar o nosso Pai às cadeias do Aljube e de Caxias, e o que isso nos provocava de raiva contida e como isso nos marcou até hoje. A minha Mãe e o meu Avó paterno, João Soares, proibiam-nos de chorar em frente dos pides e dos guardas, para não Ihes dar a glória de nos ver derrotados. Recordo, também, que era sempre o nosso Pai, com o seu sorriso luminoso, que nos dava ânimo, consolava e com sua coragem e o seu otimismo inquebrantáveis nos dizia sempre que a liberdade estava para breve.

Para finalizar, queria felicitar a Bárbara Bulhosa, por, contra ventos e marés, continuar com a sua coragem a fazer a diferença na edição portuguesa. E o meu amigo José Pedro Castanheira por este magnífico livro, tão importante para todos nós e para as novas gerações.

E gostaria de concluir dizendo que, depois da morte de Salazar poderia ter havido o “golpe de asa”, como dizia o poeta, a coragem e a vontade política de uma renovação, de uma abertura com a ala liberal na Assembleia, mas foi exatamente o contrário que se verificou. O regime foi sempre endurecendo, apesar do descontentamento cada vez maior, e dos sinais inequívocos dos militares, que sabiam a Guerra Colonial perdida, e que pressionavam para uma negociação política.

O regime caiu de podre e ninguém o defendeu.

Termino, citando de novo um poeta, Alexandre O’Neil – é que eu aprendi a amar a poesia com a minha Mãe, Maria Barroso –

“Oh, Portugal, se fosses só três sílabas,
Linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal (..) (…)
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, (…)
Meu remorso, Meu remorso de todos nós…”»

Isabel Soares
Lisboa, 9 Outubro 2023