Texto de apresentação de «Lisboa Clichê», por Margarida Medeiros - Tinta da China

Texto de apresentação de «Lisboa Clichê», por Margarida Medeiros

[Lançamento do livro Lisboa Clichê, de Daniel Blaufuks, nos jardins do Palácio Pimenta, Lisboa, 28 de Setembro de 2021]

Nós conhecemos, durante quase décadas, Daniel Blaufuks como fotógrafo ou artista visual, autor de múltiplos trabalhos em fotografia e vídeo. Nesses trabalhos, a escrita, como referência indirecta (no conteúdo e na forma), vemo-la surgir desde os London Diaries (1994). O que se tem reafirmado mais recentemente, contudo, é a sua vocação directa para a escrita, não apenas visível de forma mais notória no seu livro Não Pai, de 2019, mas de um modo geral em diversos textos que acompanham os livros/catálogos que tem editado, normalmente associados a exposições, e desde há vários anos.

Este é um livro onde a relação entre imagem e escrita se assume directamente, talvez no sentido de ekphrasis, de interpenetração entre texto e imagem. Originalmente do grego, ekphrasis significaria descrição, mas em múltiplos contextos assumiu o sentido de comentário a imagem, de relação texto/imagem, e penso que a tensão aqui estabelecida entre ambos, como também em Não Pai (onde recorrem fotografias que directa ou indirectamente se relacionam com o texto), pode ser pensada a partir dessa ideia de cruzamento entre palavra-imagem e imagem-palavra.

Em Lisboa Clichê esta relação produz-se de forma assumida como o centro do livro. A escrita desenvolve-se como comentário cruzado com a imagem, por vezes em paralelo, outras directamente relacionada, mostrando como a fotografia, apesar de ser uma linguagem realista e objectiva, esconde à nossa percepção uma grande parte da sua informação. Um exemplo é o rolo de fotografias que se esconde por detrás do copo no auto-retrato e que o texto nos obriga a descobrir, outro, o frasco do Mokambo na imagem do homem da pasta a olhar para o preço da fruta da mercearia de bairro.

Quando acabei de ler e ver, lembrou-me o livro de Victor Palla e Costa Martins, Lisboa Cidade Triste e Alegre (1956). Tal como esse, é um livro sobre Lisboa e um livro onde imagem e texto tensionam, remetendo um para o outro, quase num sentido cinematográfico (em que a imagem é aprisionada pela narrativa, e a nossa imaginação severamente conduzida); é também um livro sobre uma cidade que já não existe, e para isso contribui o facto de ser a preto e branco, que associamos ao passado e à memória; uma cidade de cafés sem ser de cadeia, de tascas não trendy; uma cidade também em parte em ruínas, apreciada poeticamente, uma cidade de anúncios luminosos nos telhado, de pessoas em trânsito de fora de Lisboa com assuntos a tratar na capital. A Lisboa dos anos 80/90 não parece ainda muito diferente da do tempo do livro de Palla e Martins.

O título, Lisboa Clichê, também remete para uma memória: a memória de um habitante que depois de anos ausente, e filho e neto de estrangeiros emigrados aqui desde os anos 30, regressa a ela. A Baixa, o Bairro Alto, a Avenida da Liberdade, os Restauradores sempre foram o ponto de encontro das pessoas de passagem ou recém-chegadas. A Pastelaria Suíça, como todo o Rossio, era, nos anos 40, porto de paragem de judeus à espera do visto, levando-os a aumentarem os seus espaços de esplanada. Quando reencontrei o Daniel, que conhecia vagamente antes de vir morar para Lisboa, foi à frente do Café Nicola e da Tabacaria Expresso. Eu tinha uma máquina Pentax ao pescoço e ele um boné retro e um pin do Lenine na lapela. Isto foi na época da Perestroika, quando as águas do império leninista começavam a revolver e a preparar-se para passar à história. Ficavam os clichés, os símbolos, as matrioscas, como uma fotografia antiga. Ficámos amigos, primeiro com conversas sobre fotografia e depois sobre sei lá o quê.

Cliché é a palavra que se usava na fotografia, e que vinha já da tipografia, dizendo respeito a uma matriz gravada em placa metálica e destinada à impressão de imagens e textos. Aqui tem o duplo sentido: remete para a imagem e para a identificação dos lugares que ela representa e que nos são mostrados dentro de um habitus: o habitus da vida nocturna (o Frágil, o Arroz Doce, o Estádio), mas também de alguma vida diurna feita de idas ao cinema (como a imagem do éden), de crianças a engraxar sapatos, de cafés onde estrangeiros e pessoas de passagem param e se encontram. Locais que ainda guardam a marca do tempo (como também a Pastelaria Versalhes ou o British Bar) e que eram de alguma forma fotogénicos nesse tempo de um quotidiano ao sabor dos encontros e desencontros, das descobertas de dia e de noite de pessoas e mais pessoas, amores e amigos, conversas e desconversas. Cliché é também a palavra que nomeia certos lugares inevitáveis para quem vê a cidade de fora e é sempre passageiro acidental.

Estes são também clichés de uma estética do grão e do flou, do 400 ou 800 ASA do preto e branco, das sobreposições como as dos negativos estragados do incêndio do Chiado (e aqui relembram também o livro de Palla e Martins).

Mas a aproximação com o livro de Lisboa Cidade Triste e Alegre não pode ser levada demasiado longe: este não é um livro sobre observação (fotográfica), mas sobre vivências, choques, derrapagens que acabam na fotografia. É sobretudo um livro sobre pessoas, algumas pessoas (bastantes), que passavam pelos mesmos sítios, às mesmas horas, com sonhos comuns: criar um quotidiano diferente, ser imortal naquele mesmo dia. Rasgar a madrugada a beber cerveja barata (no Frágil era muito cara!) ou um café para poder ainda chegar a casa. Regressar a casa quando os outros comuns iam a sair, para engraxar sapatos ou escrever umas notícias no jornal.

Esta é também a cidade onde proliferavam jornais e revistas no final dos anos 80 e nos anos 90, que empregavam fotógrafos artistas a tempo inteiro (o caderno 3 do Independente, as revistas Elle e Marie Claire, o Expresso-Revista e depois o Público Magazine com os seus portfolios). Uma cidade feita de imagens que se cruzam ainda em papel nas mãos dos leitores e não no telemóvel ou no computador. Uma cidade pré-digital, onde o star system nascente anda pela noite e no escuro à procura da luz, apanhado às vezes por uma máquina fotográfica e não pela câmara do telemóvel que instantaneamente lhes devolveria a sua imagem.

Hoje temos este livro graças à digitalização desses clichés, mas ele reúne os traços de uma memória de sensações tácteis e cheiro de revelador, ampliações feitas na casa de banho e rolos revelados de noite onde aconteciam acidentes. A capa é contudo a cores, porque o mundo não pára e é preciso que as memórias não nos prendam ao passado mais do que o necessário para escrever um livro. Por isso também é um livro sobre como olhar o passado deixando que o presente o possa habitar.