
[Conferência de Dulce Maria Cardoso para o aniversário do jornal Público, 6 de Março de 2021]
As palavras falharam. Só elas poderiam ter-nos salvo da tragédia ou de uma tal dimensão de tragédia, que já vai com mais de dois milhões e meio de mortos. Não falo de palavras mágicas, mas das que todos conhecemos, as palavras do nosso quotidiano. A Ciência, que organiza o saber com palavras – ainda que em linguagens dominadas por poucos – depressa descobriu aquelas com que nos explicou que era possível concertarmo-nos para consertarmos o Mal que se atravessou nas nossas vidas.
Permitam-me que seja maniqueísta. Em períodos complicados, como o que atravessamos, pode ajudar-nos a clarificar o pensamento.
Quase sempre, o Mal que surge a uns não se apresenta a outros, ou não é entendido como Mal por esses outros, acontece até ser entendido como Bem, ou é difícil sabermos do Mal por que uns e outros estão a passar, ou simplesmente não queremos saber. Por isso tanto nos desencontramos, desentendemos, guerreamos. Mas desta vez, todos reconhecemos o Mal como Mal e o Mal apresentou-se a todos quase em simultâneo; as novas tecnologias e as novas comunicações mantiveram-nos informados de tudo ou de quase tudo, em direto ou praticamente em direto, como nunca havia sido possível em situações semelhantes. Todos estivemos ligados, sintonizados. Ainda assim não fomos capazes de evitar a tragédia.
Não somos comandados tão tiranicamente pela biologia como acontece com os outros animais, que mesmo que se organizem em sociedades complexas, essas sociedades de pouco lhes servem para protegê-los contra novas e inesperadas agressões. Nós, pelo contrário, temos uma enorme liberdade de decisão e de atuação, quer individual, quer coletiva; temos inteligência, temos sabedoria, o desconhecido nunca nos é completamente desconhecido;
atempadamente soubemos que eliminaríamos o novo vírus se guardássemos distância suficiente uns dos outros por um determinado período de tempo, como se estivéssemos no jogo da estátua, quase uma brincadeira de crianças.
Depois de nos permitirem este entendimento, as palavras permitir-nos-iam entendermo-nos, organizarmo-nos; uma tarefa aparentemente fácil já que estávamos todos sintonizados.
Os nossos atos decorrem mais das palavras do que do instinto. Ao princípio é o Verbo; para nós, ao princípio é sempre o Verbo. As palavras poderiam ter-nos salvo:
Partindo das palavras que a Ciência dita, uma tradução nem sempre perfeita das leis de Deus ou da Natureza, mas ainda assim suficientemente precisa, duas tarefas se impunham perante o aparecimento do novo vírus: criar palavras certas para as leis dos Homens e escolher aquelas outras que encontrassem abrigo e aceitação em cada um de nós, para assim comandarem os nossos atos.
Cabe ao poder político e à comunicação social anunciarem de forma credível às populações o surgimento de uma ameaça nova; são as palavras do poder político e da comunicação social que moldam os comportamentos das populações. O poder político e a comunicação social falharam na execução das duas tarefas.
Perante isso, não tínhamos como não falharmos todos.
Poderia ter sido diferente? Os poderes instituídos apressam-se a classificar como utópico qualquer objetivo que não tenha sido ainda alcançado e que se apresente como idílico. É raro haver quem seja suficientemente criativo e corajoso para perseguir um tal objetivo. Desta vez – felizmente – houve quem o fizesse, alguns países ousaram querer eliminar o novo vírus apesar da quase totalidade do resto do mundo se conformar em viver para sempre com ele. O objetivo relevou-se de facto utópico, mas os números da tragédia em tais países são incomparavelmente menos terríveis, demonstrando que compensa ser criativo e corajoso. Quem não o foi agarra-se agora a diferenças geográficas, políticas, culturais para inventar desculpas que mascarem culpas. Não me interessa deter-me na culpa, não me move um ímpeto castigador, mas sim a entusiasmante esperança que também decorre destes factos: a criatividade e a coragem triunfam em confronto com a falta de compaixão, o excesso de confiança, a indiferença e o desrespeito pelos outros, o egoísmo e o hedonismo, a ignorância.
Isto é tão mais importante quanto temos pela frente a pergunta: E agora? E o mundo de amanhã?
O passado é incorrigível, o futuro será aquilo que dele fizermos.
Estamos todos cansados do que se passou a chamar a nova normalidade. Em quase todos os discursos políticos está implícita a promessa de em breve regressarmos à antiga normalidade, que em breve tudo voltará a ser como era. Não, não podemos voltar à antiga normalidade. Não podemos porque não seremos capazes de o fazer, não nos deixarão fazê-lo; não podemos porque também não o devemos fazer, porque não o queremos fazer.
Acredito e desejo que voltaremos a existir sem medo da proximidade física dos outros. Mas há feridas criadas durante a pandemia que demorarão ou nunca chegarão a sarar, outras cicatrizarão mal.
O funcionamento torcido desta provisória nova normalidade tem-nos obrigado a experiências económicas, políticas, sociais, culturais, familiares, emocionais que não serão esquecidas pelos vários poderes a que estamos sujeitos. Na maioria dos casos, essas experiências correspondem a mudanças que em nada servem o nosso bem-estar. Mas servem, em muitos aspetos, outros interesses.
Há muito tempo que os avanços tecnológicos, as novas formas de comunicação, a iminente robotização, anunciavam que se pode produzir a mesma riqueza com menos custos. Foi faltando capacidade e vontade para modificar benignamente a máquina socio-laboral, permitindo-se que a situação fosse evoluindo lenta e sub-repticiamente de forma selvagem. A pandemia mexeu também as águas deste pântano; a evolução que era lenta e sub-reptícia, passará a ser rápida e explícita.
Não nos deixarão voltar à antiga normalidade. Mas isso não tem de ser mau. Havia muito de errado no funcionamento das nossas sociedades.
Novamente, ignorarmos ou negarmos estes factos corresponderá a permitirmos que o futuro seja traçado por interesses alheios ao bem comum, corresponderá a aceitarmos que o Conhecimento continuará a não estar, antes de tudo, ao serviço do bem comum. Depende de nós – de mim, de cada um que hoje me ouve, de cada português, de cada europeu, de cada ser humano – conseguirmos fazer com que as palavras não falhem.
Neste tempo de mudança, as questões que considero mais importante que as palavras tratem são três:
Primeira questão: a justiça social e o abandono. Durante este ano têm-nos chegado notícias de todo o mundo acerca do desmesurado número de infetados, muitos a adoecerem gravemente, hospitais em situação de rotura, serviços funerários a não conseguirem dar conta de tantos mortos. A par dessas assustadoras notícias chegam-nos outras de manifestantes que reivindicam o fim dos confinamentos e o regresso ao trabalho. Não verão as imagens dos hospitais? Estão mal informados? São todos negacionistas? Viciados em trabalhar? Loucos? Como podem ser indiferentes à saúde daqueles com que contactam, à sua própria saúde? São suicidas? Não me parece. Estou convencida de que quase todos são movidos pelo desespero de saber que, sem trabalho, mesmo que por um período limitado de tempo, não poderão providenciar casa, comida e aquecimento a si e aos seus. Vivem angustiadamente no limiar da sobrevivência. A pandemia não só tem exposto a nefasta injustiça social existente nas sociedades contemporâneas como a tem acentuado fortemente. Os cidadãos têm de deixar de se sentir abandonados. De que nos serve a fúria cega e surda do progresso (para onde? para quê?) se não conseguirmos resolver a injustiça social e o abandono?
Segunda questão: a nossa relação com o ambiente e com os outros animais. Mesmo que nunca se venha a saber a origem do novo vírus, que se prove que afinal não resultou do contacto entre humanos e morcegos ou entre humanos e pangolins, a Ciência garante-nos que muitas das infeções graves que nos têm surgido resultam da exploração que fazemos dos outros animais. A Ciência tem também demonstrado que as nossas ações têm provocado profundas mudanças ambientais que estão a causar alterações climáticas no planeta, com impactos brutais no ar, na água e em terra.
O ritmo a que as espécies se extinguem hoje é incomparavelmente superior ao que alguma vez aconteceu desde que o Homo Sapiens habita o planeta; e esse ritmo tende a aumentar cada vez mais. Se nada for feito, acabaremos por, também nós, fazer parte do grupo de espécies extintas em breve. Tal como há um ano, a Ciência esclarece-nos sobre o que está a acontecer, sobre o que acontecerá se pouco ou nada fizermos. E, quanto a isto, não haverá vacina.
De que nos serve a fúria surda e cega do progresso (para onde, para quê) se até a nossa existência é posta em perigo?
Imaginemos que somos infetados por um novo vírus que se transmite pelo ar, cujo grau de contágio é muito elevado e cujas mutações são suficientemente rápidas para que se torne impossível criar imunidade de grupo; imaginemos que não conseguimos descobrir uma vacina para esse vírus e que atuamos de maneira idêntica à que, em geral, atuámos em relação ao SARS-CoV-2. O que aconteceria? Talvez os epidemiologistas digam que é impossível que um tal vírus venha a existir. Sim, talvez seja impossível existir um tal vírus com corpo feito de DNA ou RNA e proteínas e lípidos, mas existe já – todos o sabemos – um vírus com poder idêntico e corpo feito de palavras; chego assim à terceira questão: o ódio, o vírus do ódio, e a repressão.
Os discursos de ódio espalham-se pelo mundo a uma velocidade e com uma eficácia sem precedentes. As redes sociais contribuem certamente para que isso aconteça, mas o ódio não é intrínseco às redes sociais ou a qualquer outra forma de comunicarmos; o ódio infiltra-se, sim, facilmente em tudo. O Mal, ao criar mudança e descontinuidade é mais chamativo: enquanto animais, somos alertados para a mudança e para a descontinuidade; enquanto humanos aprendemos a amaciar o medo com palavras, travestindo sedutora e perigosamente muitos alertas. Construtivo e atento, o Bem é menos ágil e requer um sistema imunitário forte.
Depois de períodos de grande vulnerabilidade, desproteção e insegurança como aquele que estamos a viver ou o que foi vivido há um século aquando da gripe espanhola, o sistema imunitário de uma sociedade fica enfraquecido, e tanto mais quanto a sociedade já estivesse enferma; então, o Mal não encontra defesa bastante, é tentadora a adesão a regimes repressivos que iludem os desprotegidos com a desejada segurança, os discursos de ódio tornam-se tão mais contagiantes quanto mais abandonados estivermos ou nos sentirmos. E isso leva-nos de regresso à primeira questão, ao abandono.
Escolhi dizer questões em vez de assuntos porque uma questão induz de imediato a vontade de a resolvermos, denuncia a necessidade de não a deixarmos sem resposta. Formular uma questão é quase sempre incomparavelmente mais fácil do que delinear a sua resolução, ainda para mais tratando-se de questões como aquelas que destaquei e que todos conhecem. É verdade que a maneira de formular uma questão por vezes ajuda a que se descubra um caminho para a sua resolução, mas sinto que não posso terminar esta apresentação sem ousar sugerir de forma mais precisa como ou por onde abrir o futuro, tanto mais que considero que a falta de criatividade e de coragem tem sido fatal durante a pandemia.
Este é o tempo de despejarmos sobre a mesa tudo o que trazemos nos bolsos.
Ouso, pois, fazer uma proposta e essa ousadia tem menos de atrevimento do que de obrigação. O que existe só existe mal se soubermos que é possível inventar-lhe outra existência com menos sofrimento; senão o que existe, existe, simplesmente, nem bem nem mal.
Não é novidade que os artistas vivem mal no nosso país. Os trabalhadores das áreas artísticas e culturais são dos que mais têm sofrido nesta crise pandémica, mas já antes as condições dadas a estes profissionais eram indignas de uma sociedade que ser quer pautada pela justiça.
Os artistas precisam de existir autónomos e independentes. É um erro grosseiro fazer depender a arte de uma espécie de lei da oferta e da procura, é uma insidiosa injustiça fazer depender os artistas de uma espécie de caridade.
Proponho, pois a criação de um Rendimento Básico Incondicional para os artistas. Que quem se dedique a tempo inteiro à criação artística tenha direito a um rendimento mensal fixo, independente daquilo que crie, um rendimento que lhe permita viver com dignidade e criar de forma livre. Que os apoios afetos à cultura sejam repensados de modo a viabilizar a existência de um tal rendimento. A eventual dificuldade de objetivar o que é um artista não me parece relevante, já que é desejável que o universo abrangido por tal rendimento possa incluir cada vez mais cidadãos: com os avanços tecnológicos, os cidadãos serão cada vez mais dispensados de trabalhar e a escolha que se terá de fazer em breve, que possivelmente já se tem de fazer agora, é entre uma sociedade entregue ao desemprego e aos chamados “bullshit-jobs” e uma sociedade justa e feliz.
Os seres humanos têm-se construído acossados: temos uma inteligência que nos dá a ilusão de liberdade, temos um corpo de que só conseguimos cuidar se nos submetermos à paternalista organização socio-laboral existente: “trabalha primeiro, sustento-te depois”, é a chantagem a que estamos sujeitos. A Humanidade vive ainda a sua adolescência, a sociedade não confia que um indivíduo produza alguma coisa de útil se não estiver sujeito a esta chantagem. Os artistas são os únicos loucos, ou quase, libertos dela, já que ao seu trabalho poucas vezes corresponde sustento. E mesmo assim trabalham.
Por isso é justo que o Rendimento Básico Incondicional comece por eles.
Em abril de 2010, fui convidada para falar da condição dos artistas pelo European Writers Council. Propus então uma versão envergonhada do que propus agora. Nessa altura, nunca tinha ouvido falar do Rendimento Básico Incondicional, julgava que se tratava de uma utopia só minha. Não é. E não é uma utopia, sequer. Depois da conferência fiquei quase uma semana retida em Bruxelas por causa da erupção de um vulcão islandês com um nome impronunciável. Paradas as ligações aéreas entre grande parte da Europa, estando as terrestres esgotadas, restava-me esperar no caos que de repente se instalou.
Na conferência, tinha terminado a minha participação com uma pequena história; pretendia com essa ficção responder à pergunta que estará também agora na cabeça dos que me ouvem: que sentido faz dar primazia aos artistas na atribuição de tal rendimento se não há garantia que os artistas venham a criar alguma coisa artisticamente relevante?
Deixem-me que vos conte também essa pequena ficção:
Um telefone toca a meio da noite numa esquadra de polícia. Uma criança foi avistada, perdida num bosque. A polícia disponibiliza todos os meios para encontrar essa criança. Não há uma descrição precisa da criança e os agentes, dispersos em campo, têm apenas uma ideia vaga daquilo de que estão à procura. Uma ideia que será eventualmente muito diferente de agente para agente. Se a criança chegar a ser encontrada, sê-lo-á só por um dos agentes. No entanto, todos concordamos que deverá haver mais do que um agente a procurá-la. Não fosse a escassez de recursos, diríamos até que todos deveríamos envolver-nos na busca. A probabilidade de a criança ser encontrada é tanto maior quanto maiores forem os meios disponibilizados. Ainda que não possa haver garantia de que a criança será encontrada. Talvez a criança nem sequer exista. Talvez tenha sido um falso alarme.
Uma obra artística é como a criança perdida nos bosques. Os artistas são os agentes dispostos a procurá-la, dispostos a correr o risco de regressarem a casa de mãos vazias, dia após dia, sem a terem encontrado. Poderá levar dias, meses, anos até que a busca dê resultados. E a criança poderá mesmo nunca ser encontrada.
Deveremos por isso abandoná-la?
Eu digo que não. Mas para tanto temos de criar condições para que os agentes continuem em campo.
Uma semana depois da conferência em Bruxelas, o vulcão tinha já adormecido outra vez. A minha proposta ficou esquecida e esta pequena história também. Tudo regressou à anormal normalidade que nos trouxe até aqui, à anormal normalidade a que não podemos regressar, a que não nos deixarão regressar, a que não queremos regressar. Por certo, nenhum vulcão entrará agora em erupção, mas ficaremos retidos bem mais do que uma semana. Se não mudarmos o nosso comportamento a terra não deixará de tremer. Ou pelo menos, sobre ela, a humanidade.
Muito obrigada