
UM LIVRO BLASFEMO DO SÉCULO XVI JUNTA-SE À COLECÇÃO «A VIDA PRIVADA DOS LIVROS», DIRIGIDA POR ALBERTO MANGUEL
Livro maldito, de cuja primeira edição apenas sobrou um exemplar, A Louçana Andaluza é uma crónica dos meios marginais, com destaque para a prostituição, da Roma de início do século XVI — antes que a sua tomada e saque pelas tropas de Carlos V, em 1527, tivesse posto fim a uma época de esplendor. A linguagem crua e a veracidade das situações apenas acentuam o carácter único desta obra que despertou reacções contrárias: de livro blasfemo a documento escrito com uma qualidade literária indiscutível, há opiniões para todos os gostos. O texto pode agora ser julgado pelo leitor português a partir de uma tradução que nada procura esconder do original, por incómodo que seja.
«Não sabemos a que público chegou o livro; mas é de crer que tivesse tido sucesso, porque uma das razões que o autor aponta para a sua publicação é a necessidade de ganhar dinheiro com ele. […] O certo é que o escândalo do assunto e a liberdade com que trata situações tão escabrosas para a moral da época, usando uma linguagem que ainda hoje não faz parte das boas convenções sociais, não permitiram que o livro fosse conhecido até ao século XIX.»
— Nuno Júdice, Prefácio
Francisco Delicado
Para lá daquilo que o próprio autor nos diz de si próprio, sem se autonomear por razões compreensíveis dada a natureza da obra, podemos deduzir que Francisco Delicado é um clérigo cordovês, nascido ainda em finais do século xv, que se refugiou em Roma por ser cristão-novo. Aí frequentou o meio que descreve na obra, tendo sido contagiado pelo «mal francês» — a sífilis —, de que viria a padecer. O livro é concluído depois do saque de Roma, em 1527, embora a sua maior parte já estivesse terminada em 1524. Francisco Delicado foge para Veneza depois desse saque que o fez correr perigo de vida e aí publica, em 1528, o livro, sem nome de autor. Foi revisor de obras como o Amadis de Gaula e a Celestina, o que demonstra a sua erudição, e serão de sua autoria dois tratados sobre a sífilis: De consolationem infirmorum e Modo de adoperare el legno de India occidentale, este último levando a inscrição «Francisco Delicado composuit in alma urbe anno 1525». É de crer que tenha morrido em Veneza devido a essa doença, para a qual só no século xx se descobriu o tratamento.