
Caninos são os dentes, canina a fidelidade, ou a ferocidade, o ladrar e o morder, e conhecemos o cão negro da melancolia, o cão danado, o cão de guarda e o de companhia. Mas além dos cães, estes e outros, Canina convoca os mais diversos bichos (cavalos, gatos, pavões), sem que se confunda com qualquer cântico das criaturas. Em vez de humanizar os animais, animaliza os humanos, não fazendo disso virtude nem defeito. Podemos pensar em exemplos pictóricos como as mulheres-cão de Paula Rego, ou, no campo poético, em algumas imagens extremas de Alejandra Pizarnik, ou de Luís Miguel Nava, o corpo como coisa física, instintos, fúrias, ossos, nervos, sangue, matéria que, por estranho que pareça, não se opõe aqui a deus, vocábulo sempre grafado em minúscula. Nenhuma metafísica, no entanto; o objecto de Canina é a condição humana, o que há de animal nessa condição, e talvez o que há de mítico. «Depois da extinção seremos fábula», escreve Andreia C. Faria, mas na verdade já somos, no amor como na doença, na glória como na vida de cão.
— Pedro Mexia
Andreia C. Faria
Andreia C. Faria nasceu no Porto, em 1984. Publicou Flúor (Textura Edições, 2013), Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração (Edições Artefacto, 2015) e Tão bela como qualquer rapaz (Língua Morta, 2017, Melhor Livro de Poesia / Prémio Autores SPA). Em 2019 publicou Alegria para o fim do mundo (Porto Editora, Prémio Literário Fundação Inês de Castro), volume que reúne todos os livros anteriores. Em 2020 publicou o conjunto de prosas Clavicórdio (Língua Morta).