CARTAS DO MEU MAGREBE - Tinta da China

«Apesar de grande, o barco que nos leva de Algeciras a Tânger tem a graça airosa de um pássaro, branco e abstracto. Afasta­‑se de Gibraltar, uma rocha impressionante com o nome de um guerreiro berbere, para procurar as luzes de África. A meio caminho vemos as duas costas. Acreditar­‑se­‑ia com maior evidência na mudança de continente ao atravessar os Pirenéus.»
— Ernesto de Sousa

Ernesto de Sousa foi um artista de vários domínios, nomeadamente nas artes visuais e no cinema. Foi personagem central da cultura portuguesa. Fizeram parte do seu círculo de relações Almada Negreiros, Alves Redol, Lopes Graça, entre muitos outros. O seu filme «Dom Roberto» (1963), precursor do «cinema novo», foi premiado em Cannes. A caminho da Alemanha para apresentar «Dom Roberto», Ernesto de Sousa fez um longo desvio pelo Magrebe (Marrocos, Argélia, Tunísia), de onde se corresponderia com o Jornal de Notícias. Os textos que escreveu mostram uma região muito para além dos tumultos políticos da conquista das independências. Mostram um escritor que nos cativa, procurando caminhos para entender a humanidade, para estabelecer laços com os outros.

«O Zé Ernesto tomou a decisão de partir à aventura para o Norte de África para fazer reportagem. Essa viagem foi um impulso e um grande entusiasmo, que com ele partilhei. Baseava-se sobretudo na descoberta pessoal da importância da cultura do Norte de África na nossa própria cultura e na solidariedade com o movimento de independência da Argélia. Estávamos no princípio dos anos 60.»
— Isabel do Carmo

Ernesto de Sousa

Ernesto de Sousa nasceu em Lisboa em 1921. Com formação universitária em Ciências, dedicou-se desde muito jovem à fotografia, actividade de que decorreria, mais tarde, o interesse pelo cinema, pela televisão e pela video art. Da crítica e da historiografia ao cinema, da fotografia à intervenção mixed-media, Ernesto de Sousa assumiu definitivamente nos anos 70 um percurso de artista, de agitador e de utopista.
Na década de 1940, desenvolveu uma intensa actividade cineclubística. Fundou o Círculo de Cinema, o primeiro cineclube português. De 1949 a 1953, viveu em Paris, onde estudou cinema. Em 1962, realizou o filme Dom Roberto, que, tal como a revista Imagem, de que foi o principal animador, anunciava a eclosão do «novo cinema» português. O filme obteve dois prémios no Festival de Cannes. Ernesto de Sousa foi convidado para apresentar Dom Roberto na International Filmweek Mannheim 1962 e, para financiar esta viagem, estabeleceu com o Jornal de Notícias um contrato para escrever a série de crónicas Cartas do Meu Magrebe, que o levaria à Argélia e a Marrocos. Oito dessas crónicas viriam, no entanto, a ser proibidas pela censura e permaneceriam inéditas.
Ernesto de Sousa participou em diversas exposições colectivas e expôs também individualmente. Escreveu vários livros e textos dispersos em jornais e revistas, de entre os quais se destacam: Para o Estudo da Escultura PortuguesaArte Popular e Arte IngénuaA Pintura Portuguesa Neo-RealistaMaternidadeRe Começar: Almada em Madrid e Presépios, o Sol, outras Loas & etc. Entre as encenações teatrais, o exercício de comunicação poética Nós Não Estamos Algures, de 1969, com música de Jorge Peixinho, merece especial destaque. Entre as suas obras de mixed-media, destacam-se Luiz Vaz 73 e Almada, Um Nome de Guerra. Foi comissário de Portugal nas Bienais de Veneza em 1980, 1982 e 1984.
Em 1987, a Secretaria de Estado da Cultura organizou a exposição Itinerários e, em 1998, a Fundação Calouste Gulbenkian organizou a exposição Revolution My Body, ambas retrospectivas da obra de Ernesto de Sousa.
À data da sua morte, Ernesto de Sousa encontrava-se a trabalhar em dois projectos, I am Innocent e Aldeia Global, que consistiam em solicitar a diversas figuras da cultura de vanguarda de todo o mundo que respondessem a um inquérito, através de uma qualquer forma de arte, recorrendo à ligação internacional entre computadores, o que revela a extensão do pensamento vanguardista e permanentemente actualizado do autor.
Ernesto de Sousa morreu em 1988.