
INVENTÁRIO PESSOAL DA LÍNGUA, DA VIDA E DA MEMÓRIA
Que mistério envolve o envelhecimento e a obsolescência das palavras? Porque caem em desuso termos como trampolineiro, infernizar e larápio, mesmo quando as realidades que nomeiam se mantêm presentes, ainda que sob outras formas?
Com a sua estrutura fragmentária, embora alfabeticamente ordenada, este Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas resgata algumas experiências (verbais e vitais), contribuindo para a arqueologia mental de uma geração lisboeta, a que nasceu em torno do ponto médio do século XX. Sem pretensões lexicográficas, este é um exercício de introspeção e de memória que transporta o leitor para viagens, episódios de infância, livros, sortidos finos, grandes lanches na casa da tia Lídia e um certo Portugal. É apenas um livro, que não substitui nenhuma experiência vivida, a não ser porque é vivido por dentro da cabeça.
«A bola dos meus três anos nem por sombras se confundia com o ‘esférico’, assim designado pelos radialistas que enchiam os meus ouvidos ao princípio das tardes de domingo. Apesar disso, chutei-a com fervor contra os muros do quintal onde a objetiva de um fotógrafo de bairro captou a minha pose satisfeita, com os bonecos e a bola aos pés, naquele dia de primavera de 1952. Às vezes, quando me cansava de dar chutos na bola, usava-a como assento adequado às minhas pequenas dimensões, e sobre ela, em equilíbrio instável, repousava das minhas criancices. Apesar dos tratos de polé que dei à bola do meu terceiro aniversário, nunca despontou em mim o mínimo vestígio de talento para jogar à bola. Como cresci num bairro tranquilo (a Mouraria de então), assistia da varanda às animadas futeboladas que os vizinhos improvisavam numa rua em que só de vez em quando passava um automóvel ronceiro, quase sempre de um modelo antiquado, com exceção do flamejante Studebaker preto do Zé Sapateiro, que não se sabe como pudera ir parar-lhe às mãos.»
António Mega Ferreira
António Mega Ferreira, escritor, gestor e jornalista, nasceu em Lisboa em 1949. Estudou Direito e Comunicação Social, foi jornalista no Jornal Novo, no Expresso, em O Jornal e na RTP, onde chefiou a redacção da Informação do segundo canal. Foi chefe de redacção do JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias. Fundou as revistas Ler e Oceanos. Chefiou a candidatura de Lisboa à Expo’98, de que foi comissário executivo. Foi presidente da Parque Expo, do Oceanário de Lisboa e da Atlântico, Pavilhão Multiusos de Lisboa, S.A. De 2006 a 2012, presidiu à Fundação Centro Cultural de Belém. De 2013 a 2019, desempenhou as funções de director executivo da AMEC/Metropolitana. Publicou cerca de 40 obras, entre ficção, ensaio, poesia e crónicas. António Mega Ferreira morreu em Dezembro de 2022.