
Das memórias de infância à cultura e sociedade. Cem crónicas que «me fazem sentido ainda à distância de meses, de anos, que não me envergonham, não me incomodam, me dão prazer reler».
FINALISTA DO GRANDE PRÉMIO DE CRÓNICA APE
«No Brasil há o poema de uma canção de Noel Rosa que conta uma Conversa de Botequim. Um cliente entra no café e diz ‘Seu garçon, faça o favor de trazer depressa…’ Talvez se lembrem, Chico Buarque canta-a. O cliente encomenda um café, pão com manteiga, guardanapo, copo de água bem gelada, que feche a porta, pergunta pelo resultado do futebol, pede uma caneta, um tinteiro e envelope, palitos, cigarro, revistas e isqueiro… Isto é a letra de uma canção. Uma canção substantiva. E não só com o alinhar dos objectos exigidos, mas nos pormenores: o café não pode ser requentado e a porta a fechar é a da direita… Noel Rosa, que faz cem anos agora, é o mais popular dos autores de samba e esta Conversa de Botequim foi proposta recentemente pelo cronista da revista Veja Roberto Pompeu de Toledo para Hino Nacional do Brasil. Lembro isso para dizer de que Brasil estou a falar. Do Brasil de onde vem um tipo que ouvimos sem ouvir, com o barulho de fundo da televisão e que de repente nos damos conta que ele fala com a linguagem tersa e clara de uma camponesa da raia transmontana, levantamos os olhos para saber quem é esse sábio e topamos com o médio ala que acaba de ser contratado pelo Benfica vindo de Sergipe. Do Brasil que tem Manuel Bandeira, um poeta de palavras simples:
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no céu:
Com licença, meu branco. E São Pedro, bonachão:
Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Pronto, já sabem de que Brasil eu estou a falar. Aquele que fala para dizer. E diz para ser escutado ou lido. Nesse, e desse Manuel Bandeira, que um dia, sobre o maior escritor da língua portuguesa que só escreveu crónicas, Rubem Braga, disse que ele, Braga, era sempre bom, ‘mas quando não tem assunto, então é óptimo.’ Era aqui que eu queria chegar. Quando a Fernanda Câncio me convidou para falar deste seu ‘livro de crónicas’, eu aceitei logo. Porque as crónicas da Fernanda são sempre boas. Mas eu tinha um medo. De que crónicas era este livro? É que a Fernanda Câncio gosta de escrever também crónicas com assunto. Mulher de causas, já lhe chamaram. Ora sobre essas eu já tinha falado. Julgo, até que o meu obituário, caso tenha um, comece assim: ‘Morreu o autor do título da crónica Câncio é pré-socrática.’ Eu receava que este livro fosse essencialmente um livro de crónicas de opinião, onde eu só podia dizer (de facto, repetir): as crónicas de Fernanda Câncio são boas. Comecei a ler Sermões Impossíveis e no seu prefácio – irritantemente com aquela letra pequena, sem maiúsculas que ela às vezes adopta como sua marca menor – ela diz: ‘Eu gosto destas crónicas.’ Encheu-me de esperança, suspeitei que ela escolhera, sobretudo, as suas crónicas sem assunto. Sem ir ao índice, deixei-me ir, crónica a crónica, confirmando que eu relia aquelas crónicas feitas do pormenor, do porque sim, do flanar pela cidade, do revelar uma memória, do farejar o quotidiano, do destapar o que vemos todos os dias (e não vemos), do, enfim, sem assunto. E, aí, posso dizer, as crónicas da Fernanda Câncio são muito boas. É um patamar inferior ao óptimo do Rubem Braga, mas, paciência, porque abaixo dele está toda gente que escreve português. Comecemos pela primeira crónica sobre esse sem assunto que é o Sushi, um peixinho vermelho que anda à volta, à volta do aquário redondo da Fernanda. A linhas tantas, ela escreve: ‘Uma manhã, porém…’ O universo que tenho neste momento à minha frente é ingrato, é leitor da Fernanda Câncio e portanto pode responder como eu não quero. Mas esqueçam o que leram dela e respondam-me: quando foi a última vez que leram num jornal esta continuação de conversa fluida: ‘Uma manhã, porém…’? Há quantos anos não lêem uma reportagem com gente dentro, e não temas, onde naturalmente o repórter ao terceiro parágrafo use o necessário e fundamental ‘uma manhã, porém…’, escrevendo como se estivesse a falar a um amigo. Há quantos anos não lêem um relato de futebol onde o jornalista tenha escrito a dúvida que o assaltou na bancada e que ele não ousou pôr no papel: ‘Que pensou Cristiano Ronaldo quando fintou, fintou, parou, olhou, meteu a bola no sítio impossível e viu o seu próprio colega, Nani, roubar-Ihe o melhor golo da sua vida?’… Pois não, isto não se escreve. Não aparece nos jornais – e depois queixem-se da crise da Imprensa. Temos demasiados ignorantes que escrevem a notícia sem a entender e demasiados opinadores que a explicam com pormenores que não nos interessam. E temos tão poucos cronistas que se dediquem àquele infinitamente pequeno, que não nos diz tudo, é certo, mas é um espaço tão necessário para respirarmos. Terceira crónica de Fernanda Câncio. Um tipo, num estádio de Inhambane, Moçambique, 1998, leva tareia da polícia, e depois quando lhe estendem um microfone ele grita protestos justos. Grita: ‘Bateram-me! Agrediram-me! Magoaram-me! E porquê? Porquê? Eu não fiz nada, estava aqui a ver o jogo! Isto é uma injustiça, isso não pode acontecer!’. Grita, grita. Depois, logo a seguir, com voz de quem encolhe os ombros diz: ‘Mas pronto, azar de quem não fica em casa.’ Podia fazer-se do episódio uma notícia sobre a opressão do aparelho de Estado ou de como a descolonização não acabou com as injustiças… A Fernanda Câncio das causas era capaz de escrever uma boa crónica sobre o assunto. A Fernanda Câncio deste livro escreveu outra crónica, que intitulou ‘Mas pronto’. Palavras sobre um homem que ‘conseguiu essa insuperável grandeza, a de saber que muito pouca coisa tem realmente importância e muito poucos agravos são dignos de mais que um rodapé na nossa história. Saber dizer: mas pronto. E avançar.’ E este livro vai por aí fora, já eu não ousando dizer que fala das coisas infinitamente pequenas, porque todos já sabemos que sendo-o, não o são. Já estamos numa crónica intitulada: ‘Panos de pó’. E nós já presos neste magno mistério: por que são eles sempre cor-de-laranja? Estes Sermões Impossíveis é a autora a falar, a falar mesmo, com quem lê. Abre assim uma crónica: ‘Tenho uma mania. Melhor dito: tenho muitas manias, mas hoje apetece-me falar de uma delas. É a mania de aproveitar, Era assim que se chamava antes – agora chama-se reciclar.’ Por aí fora. Noutra crónica, a meio, diz: ‘pensei muitas vezes – e continuo a pensar, digamos que não é assunto fechado’.
E por aí fora outra vez. Estes Sermões Impossíveis são abusos de subjectividade e coloquialismo, são acumulação de pormenores, de detalhes de somenos, de desimportâncias, apostas no mínimo e no escondido. E ainda bem, porque o mais que precisamos no jornalismo português é disso. Ser escrito por quem não abdica de ser uma, uma, única, uma pessoa.»
— Apresentação, por Ferreira Fernandes
Fernanda Câncio
Fernanda Câncio é jornalista desde 1987. Iniciou o percurso profissional no Expresso. De 1991 a 1997, fez parte da redacção da Grande Reportagem. Esteve, de 1997 a 2003, na Notícias Magazine, tendo colaborado, entre 1996 e 2002, com a SIC. É grande repórter do Diário de Notícias.
Em 2008, elaborou uma série de documentários para a RTP2 sobre os bairros problemáticos portugueses. Foi uma das colaboradoras do blogue Jugular.